domingo, 20 de julho de 2014

Kardec e Galileu

O livro de Kardec, A Gênese, um dos cinco pilares do Espiritismo, deve ter sido pensado com o objetivo de esclarecer a maneira de o Espiritismo enxergar a origem das coisas. Do Universo, da humanidade etc.
Eu imaginava que seria recheado de ideias sussurradas a Kardec por espíritos evoluídos, que levantassem o véu de sobre nossas raízes.
Ledo engano. As primeiras 235 páginas (sic!) são uma dissertação a respeito daquilo que a ciência apurou até a redação do livro. E mal digerida. Alguém dirá: mas o que tens contra a ciência? E eu respondo: o facto de ser o estado-da-arte da ciência em meados do século 19. E transmitido por um leigo.
Ao invés de ler a respeito de camadas geológicas, por exemplo, explicadas pela ciência de meados do século 19, seria mais produtivo ler sobre isso um texto científico atual.
Mas há mais. Muito mais.
A certa altura, Kardec passa a transcrever um texto psicografado, cuja autoria é atribuída a ninguém menos que Galileu, aquele. Trata-se do capítulo VI: Uranografia Geral.

Aliás, sobre psicografia tenho muito a comentar. Mas fica pra outra oportunidade. Vamos adiante.

Kardec explica, várias vezes, que os espíritos são proibidos por Deus de nos revelar coisas que ainda desconhecemos para não nos furtar o trabalho de descobri-las por conta própria.
Muito bem.
No século 19 era corrente a teoria dos “fluidos”. Esses permeavam toda a matéria. E os havia de vários tipos: o fluido elétrico, o fluido magnético etc etc.
Kardec usa e abusa dessa teoria. É fluido pra cá, fluido pra lá.
As pestes que assolaram a Europa, por exemplo, como a peste bubônica, eram atribuídas a fluidos que contaminavam as pessoas.
Ora, Kardec escreveu A Gênese em 1868. Apenas 26 aninhos depois, em 1894, Alexandre Yersin isolou a bactéria que recebeu nome em sua homenagem: Yersinia Pestis. É a bactéria responsável pela peste bubônica. Lá se foi ralo abaixo a teoria dos fluidos. Com o desenvolvimento científico que se operou nessa mesma época, a eletricidade, o magnetismo etc deixaram de ser “fluidos”.
Pois bem. Galileu, que contribuiu com o livro de Kardec fornecendo-lhe umas quarenta páginas, não poderia – por determinação divina – ter-lhe antecipado todas essas descobertas da ciência. Mas poderia, ao menos, dizer-lhe:
  • Allan, meu filho, não fala essas coisas que logo logo elas vão pegar mal.
Não só ele não falou nada como até hoje os espiritistas se utilizam dessa terminologia dos fluidos. Sem qualquer pudor.
Mas tem mais. Galileu, que agora (em 1868) já era espírito, podia viajar por todo o cosmo. Mas não se dignou a dizer a Kardec para não falar que a Lua era habitada. Deixou que Kardec quebrasse a cara nesta nota de rodapé ao texto de Galileu, ao falar da Lua:
“O hemisfério inferior, o único que vemos, seria desprovido de tais fluidos e, por isso, impróprio à vida que, entretanto, reinaria no outro. Se, pois, o hemisfério superior é habitado, seus habitantes jamais viram a Terra, a menos que excursionem pelo outro, o que lhes seria impossível, desde que este carece das condições indispensáveis à vitalidade.” (capítulo VI, item 25, Nota, pág. 140)
É facto que Kardec afirma que tal “teoria” ainda não foi confirmada por nenhuma observação direta (nem poderia...). Mas acrescenta: “Não se pode, porém, deixar de convir em que é a única, até ao presente, que dá uma explicação satisfatória das particularidades que apresenta o globo lunar.” (pág. 140).

Afinal, se Galileu não podia nem dizer a Kardec que isso era uma imensa besteira, pra que serve o depoimento dele?

Mas há mais: se você vai ouvir o depoimento de um espírito evoluído como deveria ser o de Galileu, é razoável que você aguarde revelações no mínimo instigantes.
Mas o que se lê é uma imensa verborragia. Vou citar apenas dois trechos da fala de Galileu:
  1. “Que mortal poderia dizer das magnificências desconhecidas e soberbamente veladas sob a noite das idades que se desdobraram nesses tempos antigos, em que nenhuma das maravilhas do Universo atual existia; nessa época primitiva em que, tendo-se feito ouvir a voz do Senhor, os materiais que no futuro haviam de agregar-se por si mesmos e simetricamente, para formar o templo da Natureza, se encontraram de súbito no seio dos vácuos infinitos; quando aquela voz misteriosa, que toda criatura venera e estima como a de uma mãe, produziu notas harmoniosamente variadas, para irem vibrar juntas e modular o concerto dos céus imensos!” (item 14, pág. 133)
  2. “E, quando esses períodos da nossa imortalidade nos houverem passado sobre as cabeças, quando a história atual da Terra nos aparecer qual sombra vaporosa no fundo da nossa lembrança; quando, durante séculos incontáveis, houvermos habitado esses diversos degraus da nossa hierarquia cosmológica; quando os mais longínquos domínios das idades futuras tiverem sido por nós perlustrados em inúmeras peregrinações, teremos diante de nós a sucessão ilimitada dos mundos e por perspectiva a eternidade imóvel.” (item 52, pág. 155).

Não sei dizer se Paulo Coelho ou Lya Luft fariam melhor. Nunca li nenhum deles.
Mas me causa imensa tristeza perceber que tantas pessoas vêem nessas cataratas de termos imponentes e vazios uma revelação divina.

Valha-me deus!


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